quarta-feira, 24 de julho de 2013

''De veri simile''. Retorno.

Retorno hoje a este espaço, que deixara há muito em suspenso. Com um tema que prevalece.
 
Havia deixado esta questão em suspenso.

De veri simile

O falso, a ilusão e o autêntico. Uma ubíqua e ambígua questão.

Introdução
Uma das mais recentes e mediáticas questões relacionadas com os critérios de atribuição de uma obra artística de referência ocorreu com a reapresentação ao mercado de uma pintura hoje atribuída a Velázquez sem contestação sustentável, a Santa Rufina adquirida pela Fundação Abengoa e oferecida à cidade de Sevilha.
Com o risco de repisarmos um assunto consecutivamente publicitado, invocamo-lo aqui como referente para desenvolver um tópico que se escora numa forma muito pessoal de ponderar várias questões envolvidas.
E a mais relevante é sem dúvida a seguinte: em que se fundamentavam as reservas manifestadas por muitos eminentes estudiosos da obra velazquiana na atribuição da obra. Esta questão é ventilada e enunciada sempre subliminarmente em todos os documentos e disputas que ilustram a polémica.
Mas a verdade é que sobre o itinerário de posse e de relação com a pintura pesava um inesperado episódio que remontava a cerca de 1875.
A pintura estava então na posse do Marquês de Salamanca e preparava-se a sua apresentação ao mercado, no leilão que o Marquês e o seu colaborador, o pintor José Madrazo, realizariam em Paris, Hotel Drouot.
A pintura trazia consigo um notável itinerário de posse e de uso, pois é já indiscutível que pertencera e integrara as colecções do Marquês de Carpio. E na memória que lhe subjazia andara sempre referenciada a Velázquez.
No contexto todavia em que agora o Marquês a apresentava, Velázquez não despertara ainda os apetites do mercado que conseguira despertar Murillo. O Marquês de Salamanca e José Madrazo reconstruíram então a memória e a história que a pintura transportava, por forma a suportarem uma atribuição a Murillo. É provável até, embora a documentação técnica que o Gabinete Técnico do Museu do Prado apresentou no simpósio de Sevilha em 2007 não desenvolva a matéria, que a pintura tenha sido sujeita a maquilhagem nesse contexto, rasurando tudo o que pudesse sugerir a mão de Velázquez e que só se revelou quando a Leiloeira Sothebys procedeu à criteriosa limpeza do quadro.(1)
Uma centúria e duas décadas após, para repor a pintura num valor de excelência, uma vez consagrado Velázquez como o grande mestre da pintura espanhola seiscentista, a ultrapassar gigantescamente o interesse que Murillo suscitara no passado, foi então necessário desmanchar este equívoco.
O ambiente conspirativo que rodeou toda esta operação é hoje já do conhecimento público, embora nem todos manifestem a perspicácia para dele tirarem radicais ilacções. O Gabinete Técnico do Museu do Prado omitiu o resultado dos exames exaustivos que realizara nos inícios da década de 1990, que só revelou após a aquisição definitiva pela Fundação Abengoa, em Abril de 2008. Pode mesmo deduzir-se que esses resultados orientaram a excelente obra de intervenção e limpeza que evidenciou na pintura as marcas mais inquestionáveis da autoria velazquiana.
Mas o certo é que, no desconhecimento de todos estes episódios, uma dezena de eminentes especialistas na obra de Velázquez, como Jonathan Brown, continuaram a contestar a autoria velazquiana e, mesmo em certos casos, a de Murillo. O debate transformou-se então numa disputa que envolvia, no fundamental, a validade dos estatutos. Cármen Garrido e Pérez Sanchez podiam com toda a segurança validar a atribuição velazquiana, porque estavam conspirativamente no conhecimento dos resultados dos exames realizados no Museu do Prado.
Os restantes intervenientes, Jonathan Brown, Calvo Serraller e muitos mais, permaneciam captivos das perturbações que a operação de cosmética e ilusionismo congeminada mais de cem anos antes pelo Marquês e por José Madrazo impuseram sobre a interpretação e observação da pintura.
Bem, o que pretendemos concluir é que, derradeiramente, o que prevaleceu foi o suporte da documentação técnica realizada secretamente no Museu do Prado. A polémica acerca de uma atribuição conclusiva só se encerrou quando Cármen Garrido exibiu, como quem tira um coelho da cartola, a documentação realizada havia mais de uma década no Museu do Prado e mantida em segredo, ou omissão, até então.
De resto, podemos bem concluir que a Fundação Abengoa só pôde adquirir o quadro pelos modestos 14.800.000,00 Euros porque então a documentação era desconhecida e a disputa prosseguia.
Ora este episódio é aqui reinvocado para ilustrar a perspectiva a partir da qual pretendemos abordar uma associação de tópicos: os malabarismos que podem suportar um discurso leviano e conspirativo acerca do falso; a utilização do estatuto do sujeito que emite opinião versus estatuto da documentação e investigação aprofundada como pressupostos para a validade da pronúncia acerca tanto do falso, como do autêntico; a peregrina ambiguidade conceptual que suporta o uso da nomenclatura, falso, cópia, réplica, etc.; a quem interessa, objectivamente, do ponto de vista de proveitos calculáveis, a indefinição dos critérios que suportam o juízo sobre o falso e o autêntico; o falso como uma das categorias, entre muitas, do veri similis.

Jonathan Brown acaba por se revelar um desistente face ao contexto conspirativo do mercado.
Escrevia o seguinte sobre a ''Santa Rufina''.


No Outono de 2007, em Madrid, declararia que desistira da sua ideia de negar a autoria Velazqueña da pintura, face aos elementos então revelados por Carmen Garrido com base nos exames realizados no Museu do Prado em 1990.
Só não disse que o Prado, ou Carmen Garrido, manteve os exames em segredo, comprometendo a reputação de uma dezena de investigadores sólidos e sérios.
Mas ainda acrescentou ''a história da arte não é uma ciência exacata''.
Suponhamos que sim, que existem ''ciências exactas''. As ciências envolvidas na documentação técnica e laboratorial seriam ''ciências exactas''. A história de arte de Jonathan Brown foi derrotada pelas ''ciências exactas''. Era o Que JB não podia dizer.




 



 

sábado, 31 de janeiro de 2009

De archaeologica re

De archaeologica re

Acerca do que se deve considerar matéria arqueológica




Preliminares


Nada há de pior do que escrever, ou pretender constituir doutrina, na crista da onda. É a angústia do repórter ou do jornalista, a de ter que reportar, emitindo juízos ou contextualizações de apreciação, o que acontece, ou acabou de acontecer.
Tanto excelente repórter ou jornalista que se desqualificou neste exercício, porque não pôde reflectir serenamente sobre uma matéria que subjazia, sem que muitas vezes tivesse tido as condições para o ponderar, a um episódio que teve que reportar, na crista da onda. São os riscos da escrita événementielle.
Ora, a matéria sobre que vamos discorrer anda a vaguear, entregue aos caprichos da maré, na crista da onda. Não nos furtaremos todavia, por essa razão, a abordá-la, ou tentar abordá-la, de um determinado ponto de vista. Porque, muito antes de andar a vaguear na crista da onda, vagueava já na nossa congeminação, associada a muitos outros tópicos que entendíamos que perturbavam um ponderado alcance de vista.
O que é arqueologia? Qual o alcance e o limite da sua matéria disciplinar, seja, do seu objecto? E quem deve ou quer ser o seu sujeito?
O que é um objecto arqueológico e o que o distingue na sua especificidade? E o que é uma actividade, ou, do ponto de vista normativo, um trabalho arqueológico?
Quando, há cerca de dezoito anos, congeminei de forma estruturada esta matéria, entendi abordá-la de esguelha, ou seja, não valia a pena discorrer nos limites que ela pretendia impor-me. Isso equivaleria a abordá-la na crista da onda.
Por isso tive que fazer um exercício. Qual a matéria disciplinar, seja, o paradigma, que me toleraria indiciar as aparentes artimanhas do senso comum? Qual a disciplina que se erigira no núcleo do paradigma da modernidade.
Imediatamente, assim enunciada a questão, a luz acendeu-se. A medicina.
O que é a medicina, o que é a actividade médica, qual o seu objecto e quem o seu sujeito? E qual o papel da medicina, nomeadamente da cirurgia, na ruptura da modernidade com os paradigmas da tradição?
Uma disciplina, do conhecimento, da procura ou da intervenção não é uma entidade transcendente. Estruturou-se sobre um exercício e nos seus contextos, é na sua história que temos que indagar o que veio a estabelecer como os limites do seu alcance, seja, o seu objecto, e a consagrar o perfil do seu sujeito, seja, a conferir-lhe um estatuto e os referentes requisitos.
O caso é que, por essa razão, perdi de vista o móbil primevo e andei perdido durante uns anos pelos herméticos territórios da história da medicina, ou da cultura médica, porque, num dado momento dessa trajectória, não era já a história da medicina, mas a da cultura médica o que me interessava. O leitor virá a compreender porquê. (1)
E a matéria que presumidamente me servira para atacar de esguelha, pelo flanco, a archaelogica res, passara a ocupar a posição de núcleo axial da reflexão e andava a matéria arqueológica agora nos flancos, a rosnar às canelas da medica res.
E voltamos agora à matéria arqueológica na crista da onda. Porque, por mais que desse desígnio se tente furtar, a reflexão epistemológica acaba por redundar em contextos circunstanciais. É assim e pronto.
A arqueologia parece ter regredido até ao Século XVI e XVII, seja, ao período em que a medicina e a cirurgia, as duas em disputa, ordenaram as questões que, do ponto de vista do reconhecimento social do seu exercício, enunciavam o objecto e o sujeito.
Reabre-se então subitamente, em anacrónico contexto, um paradoxo tópico. O que é a arqueologia e qual o seu objecto e quem o seu sujeito, seja, o que é um profissional de arqueologia?
Tal como no Século XVI e XVII aconteceu com a medicina, a arqueologia vai agora redundar numa profissão, o seu sujeito num profissional, os seus objectos em pacientes. È sempre assim, quando se discorre na crista da onda.
Desde algum tempo que, antevendo que a matéria redundaria nestes tópicos, rejeitei a arqueologia, o arqueólogo e os seus objectos. Passei a discorrer sobre archaeomania, passei a querer ser mais um arqueómano e a designar os objectos pressupostamente exclusivos da arqueologia como infirmi ou pacientes.
E a disputar sobre a legitimidade da exclusividade da tutela da arqueologia sobre qualquer objecto.
Não apenas como objecto disciplinar, mas mesmo como objecto de uso e de exercício de múltiplas fruições ou de múltiplos contextos de fruição. E como sujeitos de múltiplos apelos.
E aqui estamos, na crista onda.

(1) Remeto o leitor para uma colectânea de ensaios que nunca consegui, nem porventura conseguirei concluir. Por isso continuam, desde há anos, no prelo.
Quando conseguir concluí-los, nem sei o que fazer então. Se tiver pois a paciência que eu já não tenho para lê-los, considere-os inconclusos e, se assim quiser, bem pode concluí-los, ao seu modo.




Acerca do objecto arqueológico

Em última análise, já o escrevi em vários contextos, a definição de objecto arqueológico e de objecto da arqueologia, caberá, do ponto de vista normativo ou coercivo, à arqueologia e aos arqueólogos.
Presumir-se-ia então que, previamente à formulação desta questão, deveríamos questionar o que é a arqueologia e o que é um arqueólogo. Até porque, como já apurámos nas nossas incursões pelos territórios da história de outras disciplinas, é o sujeito quem, consolidado o estatuto que reclamou, reclama a exclusividade sobre os objectos e o seu estatuto.
Ora, do ponto de vista da arqueologia temos que inverter este itinerário. Porque foi a própria arqueologia, no contexto da sua história recente, que gerou esta inversão e ambiguidade.
E a ambiguidade consiste no seguinte: o objecto arqueológico é propriedade ou domínio universal da comunidade, porque transporta a sua e a transporta para a sua colectiva memória, é um vínculo de solidariedade social no âmbito de uma dada comunidade e, nesse sentido, é pertença de todos.
Todavia, a arqueologia resguarda um domínio muito amplo da relação com o objecto arqueológico para a sua exclusividade e para a delineação desse domínio é crucial a definição do estatuto arqueológico do objecto.
Enquanto não escalpelizarmos exaustivamente esta matéria não vamos longe na abordagem de outras, seja, na definição do estatuto profissional do arqueólogo, na definição do objecto disciplinar da arqueologia, na definição de trabalho ou actividade arqueológicos em sentido estrito normativo, na definição da relação entre propriedade, posse, uso e domínio do objecto arqueológico.
Ora, o que é então um objecto arqueológico? Nada, objectivamente nada. E tudo.
Na verdade a definição de objecto arqueológico, como entidade singular e restrita, só pode ser estabelecida em referência à definição de objecto disciplinar da arqueologia, em sentido lato, seja, quais são as matérias sobre que a arqueologia se debruça.
Na sociedade actual, em que a cultura e o acesso à cultura se sociabilizou, a habilitação para uma corporação ou mesmo uma área disciplinar em abstracto, despojada teoricamente da enunciação dos seus sujeitos, enunciar a exclusividade da sua intervenção e delimitar um objecto, ou um universo de objectos restringiu-se significativamente.
Poderemos recorrer de novo, como paradigma, à medicina. Como é óbvio, no que à medicina respeita, a definição do seu objecto, ou dos seus pacientes, é desde logo restringida pela vontade de cada um, que tem a liberdade, todavia condicionada pela dramática necessidade da realidade da vida, de recusar a dispor-se como objecto.
Dado a sua específica natureza, uma vez que interfere com a derradeira liberdade de o indivíduo dispor do seu corpo, pelo menos no âmbito doutrinal de uma sociedade livre, a medicina encontra-se assediada por complexas questões de natureza deontológica e epistemológica, que deixaram de lhe dizer exclusivamente respeito, porque a sua abordagem se sociabilizou e tão habilitado se encontra o enfermo para se pronunciar sobre a legitimidade do acto ou da actividade médica, quanto o médico.
Para mais, a medicina institucionalmente reconhecida numa dada sociedade, pese todavia o peso institucional das corporações médicas, encontra sempre cada vez mais estruturadas resistências de propostas disciplinares alternativas, que podem mesmo questionar todo o edifício doutrinal dos seus fundamentos. Ou seja, cada medicina teve que confrontar-se com o facto, incontornável, da diversidade. Há várias medicinas, cada uma com os seus fundamentos doutrinários, com as suas propostas de intervenção sobre a matéria ou matérias médicas, quase todas disputando contra a exclusividade das outras ou reclamando-a para si.
É no domínio axial destes debates que o estatuto dos sujeitos se reestruturará também.
Mas de novo se interrogará o leitor, que terá a ver a medicina com a arqueologia?
Tem a ver, do ponto de vista da abordagem da matéria própria de uma disciplina, com todas as outras disciplinas. Mas, em particular, com a arqueologia.
Porque se o objecto da arqueologia se considera património colectivo de uma dada comunidade, sendo de ressalvar que foi a própria arqueologia que durante décadas da sua história recente acentuou a tónica deste tópico, então a comunidade e cada um dos seus segmentos ou sujeitos singulares devem poder pronunciar-se não apenas sobre matéria arqueológica em sentido lato, como sobre a delimitação do domínio estrito das intervenções que requerem um dado estatuto, seja social, académico, profissional ou meramente técnico.
Que sentido faria que alguém viesse reclamar que uma associação local ou regional, de formação espontânea, de cidadãos preocupados com questões ambientais, vinculado à protecção e estudo de uma espécie, não poderia intervir em qualquer domínio que entendesse adequado a realizar os seus fins, desde o recenseamento, a observação e até o apoio aos dispositivos de reprodução, mesmo que a sua actividade chocasse com os programas institucionais de intervenção, que, na sua maioria, as comunidades não conhecem ou liminarmente rejeitam?
Suspendamos provisoriamente esta perspectiva de formulação do assunto, para questionar de novo: o que é um objecto arqueológico?
Bem, começaria por propor que depende de quem enuncia a natureza arqueológica de um objecto, ou a sua exclusão do universo da arqueologia.
Eu posso muito bem tratar como um objecto arqueológico aquele que um arqueólogo, ou todos rejeitaram. E não faço mais do que usar da minha liberdade de me relacionar com um objecto da forma que entender.
É óbvio que a minha relação com um objecto, seja ou não arqueológico, está à partida sujeito a limites de alcance, na maior parte dos casos normativamente ou legalmente delineados e enquadrados. E estamos já a cruzar a análise da proposição objecto arqueológico com essa outra trabalho ou actividade arqueológica.
E atingimos então o cerne da questão.
Interludens
De praecaria lege, celeriter emissa, celeriter cadente



E então, como calhou que interviéssemos sobre a matéria na crista da onda, façamos aqui um interlúdio, suspendamos brevemente as questões de fundo, que são as que interessam, para assobiar descontraidamente no passeio público, onde todas as conjuras conjurativamente se tangem.
A interpretação de senso comum de que, numa democracia liberal, o Estado representa o interesse colectivo dos cidadãos, ou da maior porção deles, é talvez uma das mais mediáticas perversões do sentido doutrinário que lhe subjaz. A mais radical proposição, ou interpretação, seria a de que o Estado é sede de exclusividade de tal representação, deduzida da expressão eleitoral que reclama.
E, não fora todavia a sequência avassaladora de episódios mais ou menos burlescos que afectam irrecuperavelmente a confiança dos cidadãos, mesmo dos eleitores das maiorias, na função do Estado na cúria da res publica, mesmo assim, tal interpretação adviria de uma perversão dos princípios doutrinários da democracia liberal.
A mais linear configuração, em contexto de expressão jurídica, da formulação doutrinária da função do Estado numa democracia liberal, de resto sempre invocada como paradigma, é a consignada no direito penal americano, the United States versus sicrano ou fulano. Quando se senta no banco do tribunal, como réu ou como queixoso, ou acusador, o Estado coloca-se teoricamente em pé de igualdade com o cidadão, seja singular ou colectivo. E digo teoricamente porque, na prática, bem o sabemos, o Estado pode mobilizar meios, aparatos e dispositivos que o cidadão comum não alcança, ainda que de alguma forma tenha contribuído para os suportar financeiramente.
As súbitas e inesperadas ocorrências que abalam nos seus fundamentos a sociedade global desde há cerca de um ano, ou que se tornaram visíveis desde então, vão com certeza obrigar a profundas reflexões sobre o papel do Estado na sociedade do futuro e sobre a sua relação com os cidadãos, singular ou colectivamente constituídos. O risco que corremos é o de as soluções precederem as reflexões. Se tal acontecer, em minha opinião, o Estado reforçará a esfera de exercício de poderes arbitrários debilitando a esfera de intervenção dos cidadãos.
Introduzo então outra questão. É óbvio para todos que a maior debilidade, ou talvez legitimidade reforçada, de um sistema jurídico ou aparato normativo reside no facto de nenhum conseguir cobrir a imensa complexidade da vida humana e das relações entre os seres humanos entre si, ou entre estes e as coisas. Para além do mais, nenhum aparato normativo consegue a acompanhar com eficácia a celeridade das contínuas alterações estruturais das relações sociais.
Quando a sociedade se move e se altera, a lei caduca. E se não caduca formalmente, atrapalha, não cumpre o seu papel substancial, permanece como uma grilheta que impede a natural mobilidade das relações sociais. Bem, devemos admitir que, nesses casos, a sociedade se tem revelado surpreendentemente criativa e hábil para conviver com os aparatos normativos que transcendem a complexidade do drama do seu quotidiano. Ou seja, há sempre um território da vida humana onde a lei não consegue introduzir-se ou interferir.
Devo contudo assinalar desde já um pressuposto. Não sou juiz, nem advogado ou magistrado. O que não me impede de manifestar a minha opinião sobre a res juris, como a manifesto sobre a archaeologica res não sendo arqueólogo, ou sobre a medica res não sendo médico, talvez mais bruxo ou feiticeiro.
Ora, para que não nos percamos em temas triviais, sintetizemos o corpus normativo que condiciona as proposições nominais objecto ou património arqueológico, actividade ou trabalho arqueológico e arqueólogo, mais propriamente profissional arqueólogo. Aqueles poucos a que, incompreensivelmente, no momento em que se trata de reformulação dos aparatos normativos, quase todos os intervenientes parecem incontornavelmente vinculados.
E citaremos, por bastantes para o efeito, os seguintes:
A Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico, subscrita em 1997 por 28 Estados.
A Lei de Bases do Património Cultural Português, decretada pela Assembleia da República em 2001.
Na Lei de Bases (..) é o Capítulo II que trata na sua especificidade do Património Arqueológico, cuja definição específica e cujas disposições a que se sujeita devem ser enquadradas para os correspondentes introdutórios e genéricos.
No Artigo 77 do referido Capítulo determina-se:

Artigo 77.º
Trabalhos arqueológicos
Para efeitos da presente lei, são trabalhos arqueológicos todas as escavações, prospecções e outras investigações que tenham por finalidade a descoberta, o conhecimento, a protecção e a valorização do património arqueológico.
São escavações arqueológicas as remoções de terreno no solo, subsolo ou nos meios subaquáticos que, de acordo com metodologia arqueológica, se realizem com o fim de descobrir, conhecer, proteger e valorizar o património arqueológico.
São prospecções arqueológicas as explorações superficiais sem remoção de terreno que, de acordo com metodologia arqueológica, visem as actividades e objectivos previstos no número anterior.
A realização de trabalhos arqueológicos será obrigatoriamente dirigida por arqueólogos e carece de autorização a conceder pelo organismo competente da administração do património cultural.
Não se consideram trabalhos arqueológicos, para efeitos da presente lei, os achados fortuitos ou ocorridos em consequência de outro tipo de remoções de terra, demolições ou obras de qualquer índole.

No Artigo 74 do mesmo Capítulo, tratara-se já da definição específica de património arqueológico, seja objecto arqueológico ou da arqueologia.
Artigo 74.º
Conceito e âmbito do património arqueológico e paleontológico
Integram o património arqueológico e paleontológico todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos:
Cuja preservação e estudo permitam traçar a história da vida e da humanidade e a sua relação com o ambiente;
Cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia.

O património arqueológico integra depósitos estratificados, estruturas, construções, agrupamentos arquitectónicos, sítios valorizados, bens móveis e monumentos de outra natureza, bem como o respectivo contexto, quer estejam localizados em meio rural ou urbano, no solo, subsolo ou em meio submerso, no mar territorial ou na plataforma continental.
Os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional, competindo ao Estado e às Regiões Autónomas proceder ao seu arquivo, conservação, gestão, valorização e divulgação através dos organismos vocacionados para o efeito, nos termos da lei.
Entende-se por parque arqueológico qualquer monumento, sítio ou conjunto de sítios arqueológicos de interesse nacional, integrado num território envolvente marcado de forma significativa pela intervenção humana passada, território esse que integra e dá significado ao monumento, sítio ou conjunto de sítios, e cujo ordenamento e gestão devam ser determinados pela necessidade de garantir a preservação dos testemunhos arqueológicos aí existentes.
Para os efeitos do disposto no número anterior, entende-se por território envolvente o contexto natural ou artificial que influencia, estática ou dinamicamente, o modo como o monumento, sítio ou conjunto de sítios é percebido.
Os sublinhados são meus.
Não sou obviamente o primeiro a emitir o juízo de que o âmbito desta definição de trabalho arqueológico não apenas é de um radicalismo, a bem dizer prepotência, que só pode motivar a sobranceria e ironia, mas, sobretudo, a sua radical intenção de abranger tudo só poderia ter como consequência a de que não consegue abranger nada. Teoricamente, ou não tão teoricamente como isso, citaremos mais adiante episódios reais, poder-se-ia deduzir desta formulação que eu, que não sou arqueólogo mas arqueómano, não posso ler uma publicação científica sem pedir autorização, ou acompanhado por um douto arqueólogo. Pelo menos, não posso passear pelo campo a olhar para o chão, mesmo que nem sequer levante um calhau para afugentar um cão vadio, não vá andar por ali a guarda e prender-me. Se andar pelo campo devo andar a olhar para o céu, a espiar os passarinhos e a assobiar.
Como é óbvio virão os protagonistas da produção do diploma e da defesa da sua preservação essencial alegar que ela foi redigida assim para poder ser contextualizada. E eu alego que tal alegação significaria que os seus executores poderiam em qualquer momento aplicá-la segundo as circunstâncias, de livre arbítrio.
Bem, cruzemos esta definição com aqueloutra que respeita à de património arqueológico, seja objecto arqueológico ou da arqueologia.
Não seria também o primeiro a emitir o juízo de que o âmbito desta definição pode abranger tudo, sem abranger quase nada especificamente. E de que a formulação cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia contribui para a ineficácia essencial da formulação. E então aparecem depois os arqueólogos a alegar que o contexto é fundamental para a atribuição da denominação arqueológico a um objecto, ou a um universo de objectos que, do ponto de vista da interpretação literal do texto legal, pode até ser um tema, ou um assunto.
Bem, também se deduz do texto legal, ao contrário do que se vem especulando na crista da onda no domínio das abordagens triviais, mesmo emanadas por instituições ou entidades, individuais e colectivas, credenciadas, que, do património arqueológico, só constitui património nacional aquele que procede ou se identifica em resultado de trabalhos arqueológicos. O restante fica ao abrigo do disposto para o património cultural em geral, mesmo no que toca à aparentemente exaustiva caracterização dos regimes de propriedade, posse, domínio e uso.
Como é óbvio, o conhecimento e a valorização do património cultural são considerados, no espírito e na letra da Lei, direito e dever de cada cidadão, uma vez que são domínio da comunidade, exercido, independentemente do regime de propriedade, de acordo com o estabelecido genericamente.
Bem, para já, até retomarmos o assunto, importa apenas ressalvar que a definição de património arqueológico enunciada na Lei de Bases de 2001 é recorrente, literalmente, da que constava no texto da Convenção de 1997.
Ora, é no âmbito restrito destas formulações, mais uns poucos instrumentos regulamentares, que se pretende proceder à reformulação do estatuto profissional do arqueólogo e das condições de exercício da actividade, ou disciplina, bem como do universo de matérias, coisas e objectos a que respeita. No contexto em que o Estado anuncia a extinção da Carreira Profissional de Arqueólogo e em que muitas circunstâncias em que a arqueologia reclama o direito de exercer a sua actividade e tutela são contestados por segmentos cada vez mais extensos da comunidade, que tem tanta razão quando a acusa de relaxe como de excesso de cúria, as abordagens sistemáticas e doutrinárias abrangentes parecem-me muito mais relevantes do que as soluções circunstanciais.
Enfim, apenas em sentido alegórico, uma Babilónia... Que lei poderia ser aplicada numa Babilónia em que cada um fala a sua língua?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

De veri simile

De veri simile

O falso, a ilusão e o autêntico. Uma ubíqua e ambígua questão.



Introdução

Uma das mais recentes e mediáticas questões relacionadas com os critérios de atribuição de uma obra artística de referência ocorreu com a reapresentação ao mercado de uma pintura hoje atribuída a Velázquez sem contestação sustentável, a Santa Rufina adquirida pela Fundação Abengoa e oferecida à cidade de Sevilha.
Com o risco de repisarmos um assunto consecutivamente publicitado, invocamo-lo aqui como referente para desenvolver um tópico que se escora numa forma muito pessoal de ponderar várias questões envolvidas.
E a mais relevante é sem dúvida a seguinte: em que se fundamentavam as reservas manifestadas por muitos eminentes estudiosos da obra velazquiana na atribuição da obra. Esta questão é ventilada e enunciada sempre subliminarmente em todos os documentos e disputas que ilustram a polémica.
Mas a verdade é que sobre o itinerário de posse e de relação com a pintura pesava um inesperado episódio que remontava a cerca de 1875.
A pintura estava então na posse do Marquês de Salamanca e preparava-se a sua apresentação ao mercado, no leilão que o Marquês e o seu colaborador, o pintor José Madrazo, realizariam em Paris, Hotel Drouot.
A pintura trazia consigo um notável itinerário de posse e de uso, pois é já indiscutível que pertencera e integrara as colecções do Marquês de Carpio. E na memória que lhe subjazia andara sempre referenciada a Velázquez.
No contexto todavia em que agora o Marquês a apresentava, Velázquez não despertara ainda os apetites do mercado que conseguira despertar Murillo. O Marquês de Salamanca e José Madrazo reconstruíram então a memória e a história que a pintura transportava, por forma a suportarem uma atribuição a Murillo. É provável até, embora a documentação técnica que o Gabinete Técnico do Museu do Prado apresentou no simpósio de Sevilha em 2007 não desenvolva a matéria, que a pintura tenha sido sujeita a maquilhagem nesse contexto, rasurando tudo o que pudesse sugerir a mão de Velázquez e que só se revelou quando a Leiloeira Sothebys procedeu à criteriosa limpeza do quadro.(1)
Uma centúria e duas décadas após, para repor a pintura num valor de excelência, uma vez consagrado Velázquez como o grande mestre da pintura espanhola seiscentista, a ultrapassar gigantescamente o interesse que Murillo suscitara no passado, foi então necessário desmanchar este equívoco.
O ambiente conspirativo que rodeou toda esta operação é hoje já do conhecimento público, embora nem todos manifestem a perspicácia para dele tirarem radicais ilacções. O Gabinete Técnico do Museu do Prado omitiu o resultado dos exames exaustivos que realizara nos inícios da década de 1990, que só revelou após a aquisição definitiva pela Fundação Abengoa, em Abril de 2008. Pode mesmo deduzir-se que esses resultados orientaram a excelente obra de intervenção e limpeza que evidenciou na pintura as marcas mais inquestionáveis da autoria velazquiana.
Mas o certo é que, no desconhecimento de todos estes episódios, uma dezena de eminentes especialistas na obra de Velázquez, como Jonathan Brown, continuaram a contestar a autoria velazquiana e, mesmo em certos casos, a de Murillo. O debate transformou-se então numa disputa que envolvia, no fundamental, a validade dos estatutos. Cármen Garrido e Pérez Sanchez podiam com toda a segurança validar a atribuição velazquiana, porque estavam conspirativamente no conhecimento dos resultados dos exames realizados no Museu do Prado.
Os restantes intervenientes, Jonathan Brown, Calvo Serraller e muitos mais, permaneciam captivos das perturbações que a operação de cosmética e ilusionismo congeminada mais de cem anos antes pelo Marquês e por José Madrazo impuseram sobre a interpretação e observação da pintura.
Bem, o que pretendemos concluir é que, derradeiramente, o que prevaleceu foi o suporte da documentação técnica realizada secretamente no Museu do Prado. A polémica acerca de uma atribuição conclusiva só se encerrou quando Cármen Garrido exibiu, como quem tira um coelho da cartola, a documentação realizada havia mais de uma década no Museu do Prado e mantida em segredo, ou omissão, até então.
De resto, podemos bem concluir que a Fundação Abengoa só pôde adquirir o quadro pelos modestos 14.800.000,00 Euros porque então a documentação era desconhecida e a disputa prosseguia.
Ora este episódio é aqui reinvocado para ilustrar a perspectiva a partir da qual pretendemos abordar uma associação de tópicos: os malabarismos que podem suportar um discurso leviano e conspirativo acerca do falso; a utilização do estatuto do sujeito que emite opinião versus estatuto da documentação e investigação aprofundada como pressupostos para a validade da pronúncia acerca tanto do falso, como do autêntico; a peregrina ambiguidade conceptual que suporta o uso da nomenclatura, falso, cópia, réplica, etc.; a quem interessa, objectivamente, do ponto de vista de proveitos calculáveis, a indefinição dos critérios que suportam o juízo sobre o falso e o autêntico; o falso como uma das categorias, entre muitas, do veri similis.


De re nominum
Reordenar assuntos de propriedade de nomenclatura


O mais complexo assunto que se relaciona com um nome reside na aferição do universo de objectos, sujeitos ou condições que se apresenta habilitado a designar. Por isso, poderemos abordar esta questão partindo do pressuposto, ou axioma se assim se quiser entender, de que um nome, em si, é sempre uma proposição condicional.
Suponhamos que, em 1875, quando o Marquês de Salamanca apresentou a pintura atrás referida em leilão, ou o mercado, ou o meio académico e artístico tinham contestado a atribuição que a acompanhava. O que jamais poderíamos alegar era que a pintura, em si, era um falso. Fora pintada por Velázquez e é impensável, senão no domínio do absurdo, que Velázquez pudesse ter pintado um quadro com a intenção de simular uma obra do seu discípulo Murillo.
O que não correspondia à verdade era, tão simplesmente, a sua atribuição. Essa falha podia assentar num erro de observação e análise, ou numa operação deliberada para criar a ilusão que suportava a atribuição. Essa ilusão poderia ser criada através de intervenções sucessivas em vários domínios.
A intervenção radical seria a que incidiria materialmente sobre a própria pintura, alterando o seu aspecto com o objectivo de omitir tudo o que suportaria uma correcta atribuição, ou, por acréscimo, introduzir nela os componentes habilitados a criar a ilusão que suportasse uma errada, mas oportuna, atribuição.
Outra consistiria em mobilizar para a atribuição um sujeito cujo estatuto fosse inquestionável, por forma a desmobilizar qualquer presunção de contraditório. Ou em manipular dados de documentação, arquivística, bibliográfica, ou mesmo técnica, por forma a edificar com toda a solidez e consistência a ilusão.
Ora, devemos desde já propor, embora desenvolvamos o assunto adiante, que qualquer destes domínios de intervenção pode ser utilizado tanto para suportar uma atribuição ilusória, como para rebater uma atribuição correcta. Se falarmos restritamente em termos de mercado, para valorizar ou para desvalorizar.
O primeiro nome que passaremos a dissecar, tentando aprofundar as condições e o universo da sua aplicação é falso. No restrito domínio da sua aplicação a um objecto ou uma obra de arte ou de artefacto.
Poderemos enunciar então um outro axioma: um objecto de arte ou de artefacto é falso quando se apresenta de forma a simular aquilo que não é. Essa apresentação pode ser acidental ou previamente determinada, a bem dizer produzida.
Quando é acidental podemos partir do princípio que o objecto é em si e intrinsecamente ambíguo e pode por si suscitar uma ou mais atribuições ilusórias. Podemos dizer que se trata de um falso acidental, no sentido de que partiu da ambiguidade do objecto a sugestão da sua atribuição. Ninguém interveio prévia e deliberadamente sobre ele, na sua confecção ou execução, ou no contexto que o envolve ou envolveu, no sentido ou com a intenção de produzir uma atribuição ilusória.
Recorrendo de novo à pintura, entrariam neste domínio muitas obras erroneamente atribuídas, durante décadas ou mais de um século, a um determinado autor, recentemente, após rigorosas reavaliações, por vezes suportadas no recurso a dispositivos tecnológicos inovadores, reatribuídas. E ainda aquelas que continuam a suportar mais do que uma atribuição coerente, no contexto de uma maior ou menor exiguidade da documentação técnica disponível para a sua confrontação.(2)
Se nos reportarmos à arqueologia ou arte antiga, poderíamos referenciar o contínuo carrossel de reatribuições polémicas de escultura greco-romana, com os mais acesos episódios centrados na atribuição de originais e réplicas de vários contextos de execução, no que respeita às esculturas dos grandes mestres do período clássico grego, Praxíteles, Miron, Fídias e outros.(3)
Quando sobre um objecto foram realizadas intervenções, que intervieram materialmente sobre o seu aspecto ou apresentação, ou suscitaram pré-determinadamente a distorção dos critérios ou o suporte documental da sua observação, então podemos já aplicar a proposição nominal de falso produzido. Neste universo de sentido de falso produzido, que é apenas o primeiro que referiremos, poder-se iam incluir as circunstâncias em que um sujeito, singular ou colectivo, tendo à sua disposição os meios para superar a ilusão criada, ou pelo aspecto material com que o objecto se apresenta, ou pela distorção da sua interpretação, não os aplicam por conveniência, interesse, ou por inércia face a um estatuto consagrado, quer do objecto, quer da instituição que o detém, quer dos agentes da atribuição estabelecida. Poderemos deduzir com legitimidade que tais sujeitos são imputáveis por cumplicidade pela produção do falso.(4)
Bem, obviamente, a mais canónica aplicação da proposição de falso produzido, um segundo universo de sentido, registar-se-ia quando se trata de um artefacto produzido de raiz para simular o que não é, suscitando uma atribuição. Embora as anteriores circunstâncias descritas pudessem também caber nela, trata-se do domínio restrito da proposição nominal de contra-facção.
Mas na categoria de veri similis, ou seja, objectos habilitados a suscitarem uma atribuição ilusória, cabem também as réplicas, cópias, ou, para referirmos os casos de mais complexa dissecação, as realizações à maneira.
Trata-se porventura das áreas em que uma rigorosa peritagem se torna mais complexa e que, para mais, pode, em certos casos, não atingir resultados conclusivos unanimemente aceites. De alguma maneira, este universo cruza-se e invade aquele que denominámos atrás como falso acidental.
Interessa determinar com o máximo rigor possível o âmbito de aplicação deste universo de sentidos nominais.
No contexto da sua utilização corrente em história da arte, a designação de réplica aplica-se em princípio e por consenso à cópia realizada por um autor ou no seu ambiente intervenção, oficina por exemplo, de uma obra que se consagrou ou que ele próprio teve em particular estima. Embora seja também corrente a sua utilização quando uma obra consagrada foi sujeita a consecutivas reproduções no âmbito do culto a que foi votada. É neste sentido que se designam como réplicas as cópias, mais ou menos exactas, realizadas em período imperial ou mesmo republicano romano das consagradas realizações do escultores gregos do Século V e IV.


De ambigua similitudine

Há pouco tempo, uma equipa de especialistas oficialmente certificada pelas autoridades científicas e institucionais italianas revelou mediaticamente uma surpreendente descoberta.
A Loba Capitolina, seja aquela magnífica escultura em bronze que representa Rómulo e Remo amamentados pela maternal loba que se tornou o ícone da fundação e remota história da cidade, é obra medieval, provavelmente do Século IX ou X da nossa era. Objectivamente as análises em causa sugerem limites cronológicos entre o Século VII e o Século XIV. A reatribuição tem a chancela da especialista italiana Ana Maria Carruba responsável pelo recente restauro da obra, baseada na verificação de que o método utilizado na sua fundição fora o da técnica de cera perdida com um só jito, desconhecido na época a que a escultura andou atribuída, o Século VI/V AC. Posteriores datações pelo método C14 sugerem o Século XIII DC.
A polémica acerca da nova datação foi despoletada pela publicação do livro La Lupa Capitolina. Un bronzo Medievale, de Luca Editore, Roma, 2006.
O ícone ruiu subitamente.
Independentemente das questões que colocaremos adiante, devemos concluir que uma nova era na relação de análise e investigação com o objecto de arte se consolida sucessivamente. A partir de agora qualquer ícone pode ruir nos fundamentos da sua interpretação canónica. Do mesmo modo podem ruir, sem apelação, as suspeitas que recaem sobre a autenticidade de muitos outros. Porque a eficácia e a operacionalidade dos novos meios e recursos de análise têm potencialmente duas direcções, a de negar ou rejeitar e a de confirmar e consolidar.
A novidade não foi ainda unanimemente aceite pelos mais consagrados especialistas, embora desde o Século XIX essa hipótese tivesse já sido proposta por vários historiadores da Arte Etrusca.
Ora, o que decididamente nos interessa quando citamos este episódio é a formulação com que a matéria foi proposta na sua divulgação mais mediática e trivial, suportada, pelo menos com a ausência de correcção, pelas entidades académicas e institucionais. A loba capitolina é um falso medieval.
A Loba Capitolina assumiu um papel crucial, como ícone, na memória mítica colectiva dos romanos, na presunção de que a sua própria criação, como expressão artística e iconográfica, remontava aos primórdios da urbe. Se vier a consolidar-se a doutrina da sua execução medieval, como réplica ou não de um protótipo mais remoto com referências literárias inquestionadas, a escultura não deixa de constituir uma rara expressão do génio artístico e uma referência na História da Escultura Europeia.
Mas tão valiosa, do ponto de vista cultural e antropológico, com a escultura em si é a sua história recente, não apenas como ícone da memória colectiva e da solidariedade do tecido social da urbe, mas também como ilustração liminar da precariedade de um juízo ou de uma atribuição que incide sobre um objecto de arte.
E se a nova atribuição se manifestar, no contexto dos recursos tecnológicos e de análise actualmente mobilizáveis, definitiva e unanimemente consolidada, podemos daí deduzir que, passado um século mais, novos recursos e perspectivas de análise e observação não obriguem a rever a tese agora proposta?
Nunca sabemos derradeiramente nada, ou sabemos muito pouco, sobre o universo, o seu passado, o seu futuro, o seu presente. É desta humildade que tem que partir o processo estruturado de investigação e de procura do conhecimento.
Mas o que não podemos propor, senão no domínio da linguagem trivial que perturba o entendimento, é que a Loba Capitolina é um falso medieval. Se podemos utilizar a denominação falso, será para caracterizar o processo de atribuição que remonta ao Século XIX. E os pressupostos que estruturaram a relação com a escultura durante a última centúria e meia. Seja, toda uma conjuntura cultural e social orientou a comunidade para a atribuição da Loba ao Século V AC e para a sua aceitação como tal.
Um falso acidental, ou conjuntural.
Se as datações através de C14 não tivessem vindo confirmar a proposta da especialista italiana, os dados sobre que a sustentou viriam ainda a suscitar muita polémica entre os mais consagrados especialistas. Muitos continuariam a alegar que não existem dados consistentes sobre os procedimentos utilizados na fundição dos bronzes antigos, que não existem dados seguros que caracterizem nem uma época ou estilo, nem uma procedência territorial, nem sequer um atelier ou oficina, pois a metodologia da fundição e montagem depende das características do objecto, das suas dimensões, do seu peso, da sua estrutura morfológica e dinâmica. Retomou-se, mesmo, durante as últimas décadas, recorrendo a análises metalométricas mais rigorosas, a polémica da caracterização das ligas e continua-se a suspeitar que muita escultura clássica grega não seja em bronze mas em latão.
Bem, há mesmo alguns mais teimosos que contestam ainda a validade dos resultados das análises C14. Embora desenvolvamos mais adiante a matéria, temos que lhes reconhecer alguma razão. Não tem muitos anos a ideia de que as ligas aleadas com cobre, ou à base de cobre, integram em determinadas patinas, em determinadas circunstâncias, carbonato de cobre, nome tradicional verdigris, que, uma vez garantida a aquisição da massa necessária, pode ser sujeita a análise C14. Ora, a questão reside em identificar a que estrato da patine corresponde a massa adquirida, sabendo-se para mais que foi uso corrente a limpeza e repatinagem de esculturas desde época clássica, pois a patina era um componente essencial da apresentação estética da obra.
Talvez a questão da atribuição cronológica da Lupa Capitolina, faça ainda correr muita tinta. Mas, para já, estamos face a uma atribuição falsa que foi induzida pela própria ambiguidade intrínseca da obra. Acidental ou circunstancial.
De ambígua similitudine.
Aí lanço então a questão de que o leitor está à espera para justificar a denominação do tema ou episódio. Será que a Loba Capitolina se deve considerar um caso fortuito de similitude dos cânones da arte etrusca com os cânones da arte medieval, ou de semelhança dos cânones da arte medieval com os da arte etrusca? Eu não consigo responder a esta questão. Mas Ana Maria Carruba tratou logo de delimitar o problema e colocar outros ícones a recato. Com base em imagens radiográficas, que permitem detectar uma estrutura de montagem no seu interior, desde logo providenciou de forma a que as deduções acerca da Loba não fossem aplicáveis à Chimera de Arezzo, que se mantém excluída de qualquer suspeição.
O que conduziu para uma ilusória atribuição etrusca da Loba Capitolina umas gerações de especialistas? Até quando resistirá a Chimera?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Metalurgia
Metalometria, observação radiográfica, manipulação laboratorial, análise de materiais e procedimentos oficinais.
Análise de contexto histórico-cultural e artístico.
2. Javali em bronze, domesticado e arreado, transportando nos lombos vitualhas de manutenção. Trabalho oficinal de contexto a determinar, final da I Idade do Ferro, início da II Idade do Ferro. Colecção particular.
Metalurgia

Metalometria, observação radiográfica, manipulação laboratorial, análise de materiais e procedimentos oficinais.
Análise de contexto histórico-cultural e artístico.

1. Bengala em prata repuxada e cinzelada, trabalho pressupostamente português com influências orientais, indo-português, fins do Século XVI, inícios do Século XVII. Colecção particular.






segunda-feira, 7 de julho de 2008

Philipe de Monmerency, por Thomaz Key, cerca de 1550, após restauro e limpeza.
Dra. Ana Pereira, DCR da FCT da UNL; Centro de Conservação e Restauro, Cabanas Palmela.



Estratigrafias recolhidas para acompanhamento da intervenção.
Dra. Ana Pereira.

quinta-feira, 3 de julho de 2008


Retrato de Philipe de Monmerency, Conde de Hoorne, Marechal do Mar de Filipe II de Espanha. Tendo posteriormente aderido ao partido de Guilherme de Nassau, foi decapitado em Bruxelas em 1568, por ordem de Filipe II e do Cardeal Granvelle.

Cerca de 1550. Atribuído a Thomaz Key, escola holandesa.

Registo antes de iniciado o processo documental e de restauro e limpeza.

Registo radiográfico anterior à intervenção

Metade superior da pintura subjacente, correspondendo à metade esquerda da pintura visível.


Metade inferior da pintura subjacente, correspondente à metade direita da pintura visível.
Em espectro, visíveis os motivos da pintura visível, a lavadeira e cena de banquete campestre.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Durante um itinerário de documentação rigoroso, podem, desde logo, revelar-se aspectos surpreendentes.
Esta pintura era oressupostamente um esboço goyesco para uma tapeçaria, recorrente de vários temas tratados pelo pintor. Todavia, as primeiras radiografias revelaram que uma pintura do Século XVII, restaurada e rentertelada no fin do Século XIX, subjazia à pintura visível.