terça-feira, 27 de janeiro de 2009

De veri simile

De veri simile

O falso, a ilusão e o autêntico. Uma ubíqua e ambígua questão.



Introdução

Uma das mais recentes e mediáticas questões relacionadas com os critérios de atribuição de uma obra artística de referência ocorreu com a reapresentação ao mercado de uma pintura hoje atribuída a Velázquez sem contestação sustentável, a Santa Rufina adquirida pela Fundação Abengoa e oferecida à cidade de Sevilha.
Com o risco de repisarmos um assunto consecutivamente publicitado, invocamo-lo aqui como referente para desenvolver um tópico que se escora numa forma muito pessoal de ponderar várias questões envolvidas.
E a mais relevante é sem dúvida a seguinte: em que se fundamentavam as reservas manifestadas por muitos eminentes estudiosos da obra velazquiana na atribuição da obra. Esta questão é ventilada e enunciada sempre subliminarmente em todos os documentos e disputas que ilustram a polémica.
Mas a verdade é que sobre o itinerário de posse e de relação com a pintura pesava um inesperado episódio que remontava a cerca de 1875.
A pintura estava então na posse do Marquês de Salamanca e preparava-se a sua apresentação ao mercado, no leilão que o Marquês e o seu colaborador, o pintor José Madrazo, realizariam em Paris, Hotel Drouot.
A pintura trazia consigo um notável itinerário de posse e de uso, pois é já indiscutível que pertencera e integrara as colecções do Marquês de Carpio. E na memória que lhe subjazia andara sempre referenciada a Velázquez.
No contexto todavia em que agora o Marquês a apresentava, Velázquez não despertara ainda os apetites do mercado que conseguira despertar Murillo. O Marquês de Salamanca e José Madrazo reconstruíram então a memória e a história que a pintura transportava, por forma a suportarem uma atribuição a Murillo. É provável até, embora a documentação técnica que o Gabinete Técnico do Museu do Prado apresentou no simpósio de Sevilha em 2007 não desenvolva a matéria, que a pintura tenha sido sujeita a maquilhagem nesse contexto, rasurando tudo o que pudesse sugerir a mão de Velázquez e que só se revelou quando a Leiloeira Sothebys procedeu à criteriosa limpeza do quadro.(1)
Uma centúria e duas décadas após, para repor a pintura num valor de excelência, uma vez consagrado Velázquez como o grande mestre da pintura espanhola seiscentista, a ultrapassar gigantescamente o interesse que Murillo suscitara no passado, foi então necessário desmanchar este equívoco.
O ambiente conspirativo que rodeou toda esta operação é hoje já do conhecimento público, embora nem todos manifestem a perspicácia para dele tirarem radicais ilacções. O Gabinete Técnico do Museu do Prado omitiu o resultado dos exames exaustivos que realizara nos inícios da década de 1990, que só revelou após a aquisição definitiva pela Fundação Abengoa, em Abril de 2008. Pode mesmo deduzir-se que esses resultados orientaram a excelente obra de intervenção e limpeza que evidenciou na pintura as marcas mais inquestionáveis da autoria velazquiana.
Mas o certo é que, no desconhecimento de todos estes episódios, uma dezena de eminentes especialistas na obra de Velázquez, como Jonathan Brown, continuaram a contestar a autoria velazquiana e, mesmo em certos casos, a de Murillo. O debate transformou-se então numa disputa que envolvia, no fundamental, a validade dos estatutos. Cármen Garrido e Pérez Sanchez podiam com toda a segurança validar a atribuição velazquiana, porque estavam conspirativamente no conhecimento dos resultados dos exames realizados no Museu do Prado.
Os restantes intervenientes, Jonathan Brown, Calvo Serraller e muitos mais, permaneciam captivos das perturbações que a operação de cosmética e ilusionismo congeminada mais de cem anos antes pelo Marquês e por José Madrazo impuseram sobre a interpretação e observação da pintura.
Bem, o que pretendemos concluir é que, derradeiramente, o que prevaleceu foi o suporte da documentação técnica realizada secretamente no Museu do Prado. A polémica acerca de uma atribuição conclusiva só se encerrou quando Cármen Garrido exibiu, como quem tira um coelho da cartola, a documentação realizada havia mais de uma década no Museu do Prado e mantida em segredo, ou omissão, até então.
De resto, podemos bem concluir que a Fundação Abengoa só pôde adquirir o quadro pelos modestos 14.800.000,00 Euros porque então a documentação era desconhecida e a disputa prosseguia.
Ora este episódio é aqui reinvocado para ilustrar a perspectiva a partir da qual pretendemos abordar uma associação de tópicos: os malabarismos que podem suportar um discurso leviano e conspirativo acerca do falso; a utilização do estatuto do sujeito que emite opinião versus estatuto da documentação e investigação aprofundada como pressupostos para a validade da pronúncia acerca tanto do falso, como do autêntico; a peregrina ambiguidade conceptual que suporta o uso da nomenclatura, falso, cópia, réplica, etc.; a quem interessa, objectivamente, do ponto de vista de proveitos calculáveis, a indefinição dos critérios que suportam o juízo sobre o falso e o autêntico; o falso como uma das categorias, entre muitas, do veri similis.


De re nominum
Reordenar assuntos de propriedade de nomenclatura


O mais complexo assunto que se relaciona com um nome reside na aferição do universo de objectos, sujeitos ou condições que se apresenta habilitado a designar. Por isso, poderemos abordar esta questão partindo do pressuposto, ou axioma se assim se quiser entender, de que um nome, em si, é sempre uma proposição condicional.
Suponhamos que, em 1875, quando o Marquês de Salamanca apresentou a pintura atrás referida em leilão, ou o mercado, ou o meio académico e artístico tinham contestado a atribuição que a acompanhava. O que jamais poderíamos alegar era que a pintura, em si, era um falso. Fora pintada por Velázquez e é impensável, senão no domínio do absurdo, que Velázquez pudesse ter pintado um quadro com a intenção de simular uma obra do seu discípulo Murillo.
O que não correspondia à verdade era, tão simplesmente, a sua atribuição. Essa falha podia assentar num erro de observação e análise, ou numa operação deliberada para criar a ilusão que suportava a atribuição. Essa ilusão poderia ser criada através de intervenções sucessivas em vários domínios.
A intervenção radical seria a que incidiria materialmente sobre a própria pintura, alterando o seu aspecto com o objectivo de omitir tudo o que suportaria uma correcta atribuição, ou, por acréscimo, introduzir nela os componentes habilitados a criar a ilusão que suportasse uma errada, mas oportuna, atribuição.
Outra consistiria em mobilizar para a atribuição um sujeito cujo estatuto fosse inquestionável, por forma a desmobilizar qualquer presunção de contraditório. Ou em manipular dados de documentação, arquivística, bibliográfica, ou mesmo técnica, por forma a edificar com toda a solidez e consistência a ilusão.
Ora, devemos desde já propor, embora desenvolvamos o assunto adiante, que qualquer destes domínios de intervenção pode ser utilizado tanto para suportar uma atribuição ilusória, como para rebater uma atribuição correcta. Se falarmos restritamente em termos de mercado, para valorizar ou para desvalorizar.
O primeiro nome que passaremos a dissecar, tentando aprofundar as condições e o universo da sua aplicação é falso. No restrito domínio da sua aplicação a um objecto ou uma obra de arte ou de artefacto.
Poderemos enunciar então um outro axioma: um objecto de arte ou de artefacto é falso quando se apresenta de forma a simular aquilo que não é. Essa apresentação pode ser acidental ou previamente determinada, a bem dizer produzida.
Quando é acidental podemos partir do princípio que o objecto é em si e intrinsecamente ambíguo e pode por si suscitar uma ou mais atribuições ilusórias. Podemos dizer que se trata de um falso acidental, no sentido de que partiu da ambiguidade do objecto a sugestão da sua atribuição. Ninguém interveio prévia e deliberadamente sobre ele, na sua confecção ou execução, ou no contexto que o envolve ou envolveu, no sentido ou com a intenção de produzir uma atribuição ilusória.
Recorrendo de novo à pintura, entrariam neste domínio muitas obras erroneamente atribuídas, durante décadas ou mais de um século, a um determinado autor, recentemente, após rigorosas reavaliações, por vezes suportadas no recurso a dispositivos tecnológicos inovadores, reatribuídas. E ainda aquelas que continuam a suportar mais do que uma atribuição coerente, no contexto de uma maior ou menor exiguidade da documentação técnica disponível para a sua confrontação.(2)
Se nos reportarmos à arqueologia ou arte antiga, poderíamos referenciar o contínuo carrossel de reatribuições polémicas de escultura greco-romana, com os mais acesos episódios centrados na atribuição de originais e réplicas de vários contextos de execução, no que respeita às esculturas dos grandes mestres do período clássico grego, Praxíteles, Miron, Fídias e outros.(3)
Quando sobre um objecto foram realizadas intervenções, que intervieram materialmente sobre o seu aspecto ou apresentação, ou suscitaram pré-determinadamente a distorção dos critérios ou o suporte documental da sua observação, então podemos já aplicar a proposição nominal de falso produzido. Neste universo de sentido de falso produzido, que é apenas o primeiro que referiremos, poder-se iam incluir as circunstâncias em que um sujeito, singular ou colectivo, tendo à sua disposição os meios para superar a ilusão criada, ou pelo aspecto material com que o objecto se apresenta, ou pela distorção da sua interpretação, não os aplicam por conveniência, interesse, ou por inércia face a um estatuto consagrado, quer do objecto, quer da instituição que o detém, quer dos agentes da atribuição estabelecida. Poderemos deduzir com legitimidade que tais sujeitos são imputáveis por cumplicidade pela produção do falso.(4)
Bem, obviamente, a mais canónica aplicação da proposição de falso produzido, um segundo universo de sentido, registar-se-ia quando se trata de um artefacto produzido de raiz para simular o que não é, suscitando uma atribuição. Embora as anteriores circunstâncias descritas pudessem também caber nela, trata-se do domínio restrito da proposição nominal de contra-facção.
Mas na categoria de veri similis, ou seja, objectos habilitados a suscitarem uma atribuição ilusória, cabem também as réplicas, cópias, ou, para referirmos os casos de mais complexa dissecação, as realizações à maneira.
Trata-se porventura das áreas em que uma rigorosa peritagem se torna mais complexa e que, para mais, pode, em certos casos, não atingir resultados conclusivos unanimemente aceites. De alguma maneira, este universo cruza-se e invade aquele que denominámos atrás como falso acidental.
Interessa determinar com o máximo rigor possível o âmbito de aplicação deste universo de sentidos nominais.
No contexto da sua utilização corrente em história da arte, a designação de réplica aplica-se em princípio e por consenso à cópia realizada por um autor ou no seu ambiente intervenção, oficina por exemplo, de uma obra que se consagrou ou que ele próprio teve em particular estima. Embora seja também corrente a sua utilização quando uma obra consagrada foi sujeita a consecutivas reproduções no âmbito do culto a que foi votada. É neste sentido que se designam como réplicas as cópias, mais ou menos exactas, realizadas em período imperial ou mesmo republicano romano das consagradas realizações do escultores gregos do Século V e IV.


De ambigua similitudine

Há pouco tempo, uma equipa de especialistas oficialmente certificada pelas autoridades científicas e institucionais italianas revelou mediaticamente uma surpreendente descoberta.
A Loba Capitolina, seja aquela magnífica escultura em bronze que representa Rómulo e Remo amamentados pela maternal loba que se tornou o ícone da fundação e remota história da cidade, é obra medieval, provavelmente do Século IX ou X da nossa era. Objectivamente as análises em causa sugerem limites cronológicos entre o Século VII e o Século XIV. A reatribuição tem a chancela da especialista italiana Ana Maria Carruba responsável pelo recente restauro da obra, baseada na verificação de que o método utilizado na sua fundição fora o da técnica de cera perdida com um só jito, desconhecido na época a que a escultura andou atribuída, o Século VI/V AC. Posteriores datações pelo método C14 sugerem o Século XIII DC.
A polémica acerca da nova datação foi despoletada pela publicação do livro La Lupa Capitolina. Un bronzo Medievale, de Luca Editore, Roma, 2006.
O ícone ruiu subitamente.
Independentemente das questões que colocaremos adiante, devemos concluir que uma nova era na relação de análise e investigação com o objecto de arte se consolida sucessivamente. A partir de agora qualquer ícone pode ruir nos fundamentos da sua interpretação canónica. Do mesmo modo podem ruir, sem apelação, as suspeitas que recaem sobre a autenticidade de muitos outros. Porque a eficácia e a operacionalidade dos novos meios e recursos de análise têm potencialmente duas direcções, a de negar ou rejeitar e a de confirmar e consolidar.
A novidade não foi ainda unanimemente aceite pelos mais consagrados especialistas, embora desde o Século XIX essa hipótese tivesse já sido proposta por vários historiadores da Arte Etrusca.
Ora, o que decididamente nos interessa quando citamos este episódio é a formulação com que a matéria foi proposta na sua divulgação mais mediática e trivial, suportada, pelo menos com a ausência de correcção, pelas entidades académicas e institucionais. A loba capitolina é um falso medieval.
A Loba Capitolina assumiu um papel crucial, como ícone, na memória mítica colectiva dos romanos, na presunção de que a sua própria criação, como expressão artística e iconográfica, remontava aos primórdios da urbe. Se vier a consolidar-se a doutrina da sua execução medieval, como réplica ou não de um protótipo mais remoto com referências literárias inquestionadas, a escultura não deixa de constituir uma rara expressão do génio artístico e uma referência na História da Escultura Europeia.
Mas tão valiosa, do ponto de vista cultural e antropológico, com a escultura em si é a sua história recente, não apenas como ícone da memória colectiva e da solidariedade do tecido social da urbe, mas também como ilustração liminar da precariedade de um juízo ou de uma atribuição que incide sobre um objecto de arte.
E se a nova atribuição se manifestar, no contexto dos recursos tecnológicos e de análise actualmente mobilizáveis, definitiva e unanimemente consolidada, podemos daí deduzir que, passado um século mais, novos recursos e perspectivas de análise e observação não obriguem a rever a tese agora proposta?
Nunca sabemos derradeiramente nada, ou sabemos muito pouco, sobre o universo, o seu passado, o seu futuro, o seu presente. É desta humildade que tem que partir o processo estruturado de investigação e de procura do conhecimento.
Mas o que não podemos propor, senão no domínio da linguagem trivial que perturba o entendimento, é que a Loba Capitolina é um falso medieval. Se podemos utilizar a denominação falso, será para caracterizar o processo de atribuição que remonta ao Século XIX. E os pressupostos que estruturaram a relação com a escultura durante a última centúria e meia. Seja, toda uma conjuntura cultural e social orientou a comunidade para a atribuição da Loba ao Século V AC e para a sua aceitação como tal.
Um falso acidental, ou conjuntural.
Se as datações através de C14 não tivessem vindo confirmar a proposta da especialista italiana, os dados sobre que a sustentou viriam ainda a suscitar muita polémica entre os mais consagrados especialistas. Muitos continuariam a alegar que não existem dados consistentes sobre os procedimentos utilizados na fundição dos bronzes antigos, que não existem dados seguros que caracterizem nem uma época ou estilo, nem uma procedência territorial, nem sequer um atelier ou oficina, pois a metodologia da fundição e montagem depende das características do objecto, das suas dimensões, do seu peso, da sua estrutura morfológica e dinâmica. Retomou-se, mesmo, durante as últimas décadas, recorrendo a análises metalométricas mais rigorosas, a polémica da caracterização das ligas e continua-se a suspeitar que muita escultura clássica grega não seja em bronze mas em latão.
Bem, há mesmo alguns mais teimosos que contestam ainda a validade dos resultados das análises C14. Embora desenvolvamos mais adiante a matéria, temos que lhes reconhecer alguma razão. Não tem muitos anos a ideia de que as ligas aleadas com cobre, ou à base de cobre, integram em determinadas patinas, em determinadas circunstâncias, carbonato de cobre, nome tradicional verdigris, que, uma vez garantida a aquisição da massa necessária, pode ser sujeita a análise C14. Ora, a questão reside em identificar a que estrato da patine corresponde a massa adquirida, sabendo-se para mais que foi uso corrente a limpeza e repatinagem de esculturas desde época clássica, pois a patina era um componente essencial da apresentação estética da obra.
Talvez a questão da atribuição cronológica da Lupa Capitolina, faça ainda correr muita tinta. Mas, para já, estamos face a uma atribuição falsa que foi induzida pela própria ambiguidade intrínseca da obra. Acidental ou circunstancial.
De ambígua similitudine.
Aí lanço então a questão de que o leitor está à espera para justificar a denominação do tema ou episódio. Será que a Loba Capitolina se deve considerar um caso fortuito de similitude dos cânones da arte etrusca com os cânones da arte medieval, ou de semelhança dos cânones da arte medieval com os da arte etrusca? Eu não consigo responder a esta questão. Mas Ana Maria Carruba tratou logo de delimitar o problema e colocar outros ícones a recato. Com base em imagens radiográficas, que permitem detectar uma estrutura de montagem no seu interior, desde logo providenciou de forma a que as deduções acerca da Loba não fossem aplicáveis à Chimera de Arezzo, que se mantém excluída de qualquer suspeição.
O que conduziu para uma ilusória atribuição etrusca da Loba Capitolina umas gerações de especialistas? Até quando resistirá a Chimera?

Sem comentários: